quinta-feira, abril 07, 2005

não fosse a fumaça insistente que o garçom provoca com a pequena churrasqueira colocada na calçada e eu talvez nem prestasse muita atenção no bar. mas me pegou aos poucos. atravesso aquilo há meses, tentando escapar do cheiro da carne e diariamente esbarrando o olhar nas pessoas sentadas que me parecem quase sempre bem à vontade em desfilar suas mazelas. duplas de amigos antigos, um casal de quase amantes, um velho meio azedo, mulheres em trios despencados pelo tempo e outras variações sobre o mesmo tema. no meio de tudo eu, acuada, mas nem tanto, tateando um rastro de sentido nas caras e bocas que nunca me dão a mínima.

as pessoas, a churrasqueira e o garçom fazem parte desse mesmo bar, esquina de Amazonas com Contorno, que abre religiosamente às seis da tarde pra dar conta de seu papel no cenário de carros e semblantes nada amigáveis. em volta, barulho, letreiros luminosos gigantescos e uma nuvem de gente que em comum resmunga o desejo cego de voltar logo pra casa. arremessada do ônibus como os outros desafortunados, subo a rua ansiosa e chego sempre na esquina do bar com a sensação de ter perdido alguma coisa no caminho. aceito por vezes ser impregnada pelo cheiro e em troca cato nas mesas pedaços de conversa que em tempo algum chegaram a me pertencer.

já vinha ensaiando entrar e distrair as vistas na espera pela baldeação, mas só na semana passada desisti de me acovardar e deixei a calçada para por os pés lá dentro pela primeira vez. e veio a mocinha com sua cara de quem estava acostumada em ajudar. pra me livrar dela, simulei uma dúvida qualquer, ganhei tempo e grudei a atenção nas estantes com bebidas até no teto, no São Jorge estrategicamente pregado ao fundo e nas miudezas que se amontoavam sob uma ordem sentimental dentro do balcão e em volta do caixa. entendi onde estava quando vi do meu lado o aviso de que ali só trabalhava "gente da família". e da calçada me parecia ser só fumaça misturada à minha grande vontade de passar rápido por todo aquele transe falante.


comprei por fim um chocolate óbvio e vi confusão na cabeça da balconista por ter arriscado com sua paciência. ela, por sua vez, não tinha disposição nem vocação pra frivolidades e tratou de esquecer o desconforto tão logo se lembrou que precisava avisar ao garçom sobre o fogo. era hora de virar de novo a carne lá fora. e também de voltar a ruminar o tempo sem medo até que chegasse o fim da noite e ela lavasse o passeio com a mangueira, deixando os olhos seguirem o fio de água que toda noite teimava em escorrer avenida abaixo.

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