quinta-feira, março 24, 2005

De se esperar era que não suportasse mais ruídos, morando ali de frente para a linha de trem há tanto tempo, mas a janela estava sempre aberta e o convívio entre o barulho e o silêncio era tecido com resignação. Dali, soube por carta da morte da mãe, amargou amizades desfeitas, murchou por um irmão perdido e muitas noites caminhou para a cama quase sem lembrar o próprio nome. Continuava sendo Zé, 46 anos, sapateiro, viúvo e paciente. O mesmo que, ainda muito moço, desistiu de latir contra o destino.

Toda alma que cruzava seu caminho não fazia outra coisa além de se lamentar e seu alívio e único triunfo era o de não se juntar à horda de reclamões. À beira dos trilhos, destilava longas horas de trabalho, varrendo assim o ranço das memórias mais insistentes. Aceitou também, aos poucos, ter o zunido intermitente do trem como relógio particular. Feliz, quase nunca, mas sabia dar algum rumo aos dias com o que lhe caía nas mãos.

O sol a pino. Um gato sujo. O asfalto carcomido em frente à calçada. Tudo cheirava a desânimo, e nesse caso o melhor era sempre desviar o olhar. Com as calças dobradas na altura dos tornozelos, se empoleirava no banco de madeira, imaginando a linha ferroviária logo atrás do muro. O barulho insistente era ainda escondido, sem forma, ingrato em sua raiz.

As vistas não alcançavam os vultos nos vagões, nem os desenhos acinzentados que as rodas faziam quando em movimento. Para Zé, tudo aquilo apontava uma parte da vida que só lhe pertencia através de ruídos. Um último apito antes de apagar a luz, a piscadela antes do sono vir e logo o dia ensurdeceria de novo.

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