quinta-feira, abril 21, 2005

reciclada e melada

se em um quarto barato de hotel eu posso colocar as coisas nos eixos, então não preciso temer quando angústias insistentes quiserem me domar, pensei comigo. aqui estou, sozinho, no centro da cidade, mas à margem do mundo dos outros, vidrado em uma janela encardida que não me diz nada e que mesmo assim me faz desanuviar. em um momento meu. calado, as mãos soltas sobre as pernas, o cigarro pela metade e nada que possa tirar o sossego que eu resolvi me conceder por alguns instantes.

o sobe e desce de escadas está longe de mim, não sei a hora da missa, não me importa a briga do casal no outro prédio e nem a agitação da rua que cresce em desvario no começo da manhã. por hora, meu espaço é este quarto, com a cama cambaleante, o espelho de borda alaranjada e uma mesa pequena de onde eu resolvi brincar com as minhas lembranças. cuidadosos, os pedaços de passado me rondam em ondas mansas, indo e vindo sempre dóceis, meio adestrados, como vestígios inofensivos de uma história que por um momento aparece para mim feito um retrato visto de longe.

assim, nesse raro silêncio de alma, me lembrei de você. não mais com aquele fôlego atropelado de palavras doídas e desejos abafados, mas como sempre deveria ter sido. vi de novo você deslocada dentro de si, mas metida a valente porque era seu jeito de sobreviver. seu humor estampado na testa e na voz e todo aquele nosso vocabulário inventado que jamais teria sentido de novo porque fez parte de duas pessoas que agora já são outras, com brilhos novos, pavores diferentes, e até os cheiros mudados pelo tempo.

nem tentei me desviar da memória porque soube que viria para me amparar e então me lembrei de quando entendemos que seriam aqueles os últimos dias de mãos dadas. estivemos muito juntos, como se a tarefa de trocar beleza fosse nossa missão irrevogável. nos reconhecemos distantes, mas aceitamos o fim e deixamos escapar gestos embriagados que impregnaram tudo em volta. ali, negamos que as horas eram fugidias e respiramos um pelo outro engolindo em seco o medo do vazio que estava pela frente. estranho, mas agora o vazio era banal. e eu até tive forças pra soprar a última tragada.

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