terça-feira, janeiro 16, 2007


mininice nº 10

Na Faixa

Vista de dentro do carro, a cidade corrida vira um apanhado de lugares picotados em frames. Fica fácil para o motorista mais desavisado pegar o vício de prestar atenção só no que precisa ver pra cumprir seus trajetos previsíveis. O perigo é que nesse descuido deixa pelo caminho o que as ruas têm de melhor. A saber: um pedaço de sol espreguiçando na calçada/ a reforma suspeita de uma casa em cacos/ uma mercearia com personalidade abusada. Quem passa a vida mais com a mão no volante do que com a sola no chão corre sempre o risco de deixar escapar esses achados que só os roteiros a pé guardam na manga.

Aproveitar a vida de pedestre é se render à delícia de explorar quarteirões sem pressa nem nada. É criar referências particulares sobre lugares diferentes da cidade e começar a transformar destinos finais em meros pretextos pra caminhadas deslavadas. Quando o andante ajusta o foco, começa a intuir história até em ruas tortas e escarafuncha histórias em inocentes cadeiras de barbearias e nos ganchos de orelhões sucateados.

Enquanto os motoristas trocam grunhidos de desgosto pra aliviar a tensão no trânsito, os passantes dividem a calçada, os canteiros e os pontos de ônibus com o decoro dos que se acostumaram a fazer parte de uma engrenagem invisível. E quando chegam esses últimos meses engolindo o resto do ano e a água desce do céu enfurecida, a legião de andarilhos se reinventa num toldo gigante de guarda-chuvas que liga esquinas molhadas. Ainda assim, continuam os a-pé em franca vantagem. Presos nos carros e com as almas engarrafadas, os motorizados ficam cada vez mais surdos com o barulho do limpador de vidros e perdem o ruído da chuva que cai sobre tudo - chegam em casa secos, mas entediados.

Andando a pé, a conexão com o cenário em volta é mais direta, a gente fica mais íntimo da cidade – e vice-versa. Fala dessa entrega o ensaio da fotógrafa Paula Huven que rodeia essas letras. Fotógrafa mineira que acaba de botar os pés e os olhos no Rio, ela é da turma que não resiste a uma boa caminhada-descoberta e costuma dividir seus achados no coletivo www.diariodosolhos.zip.net - passeia lá. E deixa o carro em casa de quando em vez. Porque andar a pé é bom até pra escorregar na contramão.

4 comentários:

Anah disse...

esse olhar diferente sobre o cotidiano - sempre importante!
Adoro "pedaco(s) de sol espreguicando na calcada"
Beijo.
ana

Anônimo disse...

vocabulário abusado hein! delícia de texto.

Anônimo disse...

eu que acabei de arrumar meu carrinho, sei bem o que é chegar em casa molhado, ou melhor encharcado das águas que caem nessa época do ano, porém feliz e com a alma lavada de sentir a vida, e renovado pra continuar a mesma. até pq a vida não é mais que isso.

[d. ayer]

maria lutterbach disse...

oi, Ana! valeu pelo recado internacional :)

e jovem, vi que vc também voltou à ativa no blog, neam?

olá ayer, bienvenido!

bjos!