alegoria de odete

Equilibrar em salto alto parece fácil, mas nada. Panturrilhas assim com desenho são coisa do diabo, então tem preço. As de Odete vivem a saracotear por aí, fortes, decididas, traiçoeiras pernas que precisam caçar rumo a qualquer custo. Bom vê-la caminhando até o ponto, com cara de quem acredita que trabalhar todo dia é uma benção e não uma provação. Quando perde a carona do Concórdia até o centro vai na fé, se empoleira sem drama no primeiro ônibus e espia o movimento em volta, devidamente maquiada e protegida atrás das bochechas de rubor forjado. No trajeto, Odete `as vezes até arrisca pensar no que a vida lhe reserva, mas com cautela porque sabe que a delícia mora na surpresa.

Chega na papelaria `as oito e, até `as seis, seu lugar é a janelinha do caixa que não mostra muito dela. É pra não ficar invisível de vez ali naquele canto ingrato que Odete capricha no preto dos cílios e fala sempre bem alto porque precisa fazer a presença ecoar de algum jeito, oras. Mesmo miúda, solta uma voz que assanha tudo em volta, um tremelique. Depois que ela fala, demora uns minutos pra calma assentar, até que ela abre de novo a boca e desarranja o ambiente outra vez, e sempre sem dó. Todo mundo da loja já convive bem com aquela conversa gritada e é capaz de fazer quase falta se Odete um dia resolver baixar o tom.

Os colegas não sabem, mas teve um tempo em que ela desgostou de chamar Odete por causa daquela outra da novela, impagável, malvadona. Chegou a sentir raiva do nome porque a Odete atriz era poderosa, mas foi passando o tempo, o povo esqueceu da outra. E Odete, a nossa, nem é boba de querer relembrar ninguém da falecida. Voltou a reinar sozinha e, sabe, ela merece.

Quando volta pra casa todo dia sente festa, já é treinada em se alegrar sem freio. São duas cervejas penduradas na conta, uma carne de panela feita na hora com música em torno e ela se refaz. Tira até a maquiagem e chama o nego pra lhe assoprar a nuca. Merecia uma foto da alma até. Arrepia sem vergonha de ser mulherzinha e se atira numa invenção amorosa que pode não valer nada, mas já basta, e ponto. Hoje, pra completar, ainda é sexta e o vento deu o ar da graça no fim da tarde, precisa é de mais nada. Só senta esparramada na calçada em frente de casa, Odete, e acende o penúltimo do maço pra sentir a luz que corre certeira por dentro.