segunda-feira, janeiro 31, 2005

todo fim de tarde passo inevitavelmente na frente da casa desse homem e já notei que não mora sozinho, embora não me reste dúvida de que é um astuto colecionador de solidão. tenho inveja dele porque é persistente em sua escolha silenciosa e ostenta sua mudez sem qualquer constrangimento. fica ali sentado, aéreo, com uns cachorros invocados sempre em volta e um cigarro de fumo de rolo em eterna construção. me conhece e me imagina para além da esquina onde sempre me faço perder de vista e sei disso porque olha pra mim como quem me desenha através de pistas largadas aos poucos.

aconteceu de nos unirmos em uma espécie de contrabando de olhares, ele de lá, eu de cá. coisa certa desde o início é que entre nós não caberiam palavras, e assim degustamos nossa negociação velada por anos a fio, eu a passar pela calçada, ele a espiar atrás da grade.

naqueles segundos fugidios diários, encontrei, não sei bem como, alívio contra a aridez dos dias e só fui me dar conta de como nosso contrato me faria falta quando ao passar por lá notei uma placa que dizia: "Vende-se". assim, escrita de má vontade, num papel achado sei lá onde, mas pregada grande e violentamente ali numa tarde que eu só pedia pra que terminasse como as outras.

quis dessa vez dessa vez voltar, dizer meu nome, que eu perdoava os cachorros e toda a sisudez daquela cara, mas que não era pra ele ir assim não. ficasse ali por mais um tempo, pelo menos até que EU pudesse me resolver e ir embora antes. mas me assustei com a gargalhada sonora que ele poderia cuspir ao me ouvir falar pela primeira vez, infantil, aos soluços, e então virei mais rápido a rua à esquerda e de novo coloquei como abismo entre nós aquele pedaço curvado de quarteirão.

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