
o homem, sua moto e seu apito de vigia zunem em frente de casa. dobram quarteirões, distanciam, voltam a cruzar a rua. às vezes o homem não vem. mas sempre sabemos quando ele passa, mesmo que ele nunca saiba o que se passa por aqui. some duas noites e reaparece como se nada tivesse acontecido. não posso culpá-lo, já que não pagamos a taxa. ele também nunca apareceu pra cobrar. passa, apita e sabemos que tudo ainda vai bem no bairro. no primeiro mês, achamos que bateria na porta, mas ele continuou sendo só esse zunido. vai ver foi porque não chegamos de carro e parecíamos um pouco estranhos, meio pobres, não provocamos alarde. ele seguiu apitando lá fora e nós começamos a existir do lado de dentro. um velho morreu na casa, me disse uma mulher ao portão. e lembrou que faziam cerâmica enquanto tomavam chá. contou, marejou e foi embora. quando entrei, o homem do apito passou. ocupamos o lugar do velhinho, entendi. seu quarto, o banheiro, a sala onde ficava o forno de queima. botamos a vitrola, um gato. nos acostumamos ao apito - um silvo longo, diriam os homens de trânsito. um ruído triste, digo eu. e penso num pássaro noturno que toma fôlego e vento no rosto, desejando chamar a atenção, mas com um certo pudor em admitir.
* obra de adriana varejão, em cartaz na piscina-galeria
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