Quando vê aparecer a mulher gorda na porta da casa, D se lembra da voz macia que, ao telefone, acertou com ele o aluguel do quarto em Bariloche. Depois de longas e mal dormidas noites em Buenos Aires, lá está ele na entrada do chalé, léguas distante do rame-rame portenho com pó barato, vinho de graça e gringas falantes. De pé na varanda, ela acena como uma promessa de mingau de aveia feito em casa, quente e polvilhado de canela, servido antes de dormir.
Acompanhando os fiapos de luz que aos poucos atravessam o quarto, D acorda devagar. Toma café, caminha pela trilha indicada por Laisa e conta exatos 38 passos até chegar à pequena praia. Passa ali as tardes lendo, tenta não se lembrar de sua mãe e teme um mergulho na água gelada que escorre ainda em neve pelas montanhas.
A dúvida sobre encarar ou não o mergulho se perde entre os gemidos de Laisa e D começa a se assombrar, no escuro, pela imagem dos dois corpos pesados desabando teto abaixo a esmagar seu tipo frágil. Pela manhã, corre ofegante em direção à praia e na volta, se agarra a um radinho de pilhas que rasga boleros mais estridentes do que as molas da cama.
Na noite antes da partida, a anfitriã se deita sozinha e a casa silencia, mas D não pode mais adormecer sem o rádio colado ao travesseiro. Embalado por delírios em AM, deixa a verdade lhe sorrir em sonho. Nos peitos de Laisa, chupa o mingau, enquanto ela ordena que ele nunca deixe os pés congelarem na água fria daquele lago escuro.
* conto publicado no site escritoras suicidas, na seção escritoras convidadas
** imagem do ensaio 'on the sixth day', feito na argentina por alessandra sanguinetti, de novo atração na piscina-galeria abaixo
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