retrato de uma obra exterminadora

Acompanhamos atentos o movimento na casa durante meses que já viraram anos. Do nosso andar, tínhamos uma visão privilegiada e invasiva sobre a construção. Primeiro, caímos em desespero com o barulho roubando nossas melhores horas de sono pela manhã. Sofremos calados porque seria quase pecado, debaixo de lençóis tão macios, praguejar contra homens trabalhando assim pesado.

A culpa durou o tempo de percebermos que as serras e picaretas só operavam naquelas sagradas horas matinais. Depois, a obra virava um recreio de eternos últimos retoques, sem prazo nem capataz. “Pense num pedreiro feliz”, debochava Ana ao ouvi-los cantar a plenos pulmões os hits da construção. Na janela vizinha, uma bicha velha e tarada pedia a deus e ao diabo que a empreitada não tivesse fim. Queria aqueles corpos suados e sorridentes circulando a vida toda pela casa inacabada, ele gozando até secar as duas bolas e perder o resto das forças.

Nos últimos tempos, mesmo as marteladas da manhã foram silenciando aos poucos e dando lugar a um puro ruído de confraria. Toda segunda eles chegavam, faziam a resenha do fim de semana, riam um bocado uns dos outros, reinventavam apelidos, comiam juntos o pão com manteiga e sumiam casa adentro, aonde não podíamos mais avistá-los. Um prego aqui, uma mão de tinta ali e dava o meio-dia, quando lambuzavam a boca com muita galinha e feijão.

A parte da tarde era reservada a uma soneca bem esticada no piso geladinho da sala. Um tapete de homens esparramados pelos cantos, dormindo lindamente feito crianças bronzeadas que descansam depois de oito castelos levantados na areia. Um sono tão intenso e sem remorsos que foi se fazendo irreversível. Outras segundas vieram e um ano inteiro se desfolhou até que não ouvimos mais nenhum pio.

De pedreiros, subiram a anjos de cimento, empalhados numa obra que não se acabou nunca.