empantufada
com o terço ainda em punho, porque não ousava deixar o marido sair de casa sem uma oração, a mulher fez tchau e recebeu de volta o aceno que era sempre mais displicente do que ela queria acreditar. deu as costas depois de ter certeza que ele não olharia uma vez mais pra trás e pôde então arrastar as pantufas até a cozinha. ninguém viu, mas o fio de luz atravessando o cômodo amanhecido despertou nela um aconchego calado. um calorzinho bom que veio num esboço de sorriso e foi embora assim que ela mirou a borra de café caída na pia. quando pensou na ausência do homem, ele tinha acabado de pôr os pés na barbearia.
lá dentro, ainda era tudo calmo e ele - marido que ali era só barbeiro - tratou de assoviar pra ganhar ritmo e começar a organizar as tesouras, os pentes e as idéias que se desembrulhavam aos poucos. durante o expediente, não costumava lembrar de Isaura porque, afinal, dormir, acordar e dividir aqueles tantos planos tortos já parecia estar de bom tamanho. em um dia como os outros, se alimentou de prosa amena com os clientes e reparou no movimento cadenciado do bairro, entre vários cafezinhos e estraladas nos dedos.
a mania de estralar dedos perturbava a mulher, mesmo assim de longe. mas era só ouvir o radinho sussurrar seus últimos impropérios no fim de tarde pra ela saber que faltava pouco pro encontro e se alienar de saudade entre os quartos. tinha aprendido a calcular seus minutos pelas horas do outro e seguia anestesiada em delírios para sobreviver daquele amor meio tramado. quando por fim chegava a noite, o barbeiro - agora marido de novo - voltava pra casa com cheiro de vento e ouvia uma Isaura radiante mostrar, em língua e dentes, o quanto havia esperado.
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