é (quase) tudo verdade
por fim chegou o peru. desses gordos, os olhos arregalados como os de quem prevê a própria desgraça sem precisar de maiores indícios. do carro, foi levado amarrado direto pro terraço. era um belo peru, embora transmitisse uma ponta de desassossego que não chegou a ser notada pela curiosidade dispersa das quatro crianças da casa.
as meninas assistiram de longe à entrada do bicho porque era a primeira vez que um peru cruzava as suas vistas e alguma precaução - pensaram - não seria desperdício. da janela, riam nervosas da cara do animal que agora já começava a se sentir à vontade no quintal de dona Marina, a mãe.
a idéia de trazer o peru ainda vivo havia sido dela. tinha lido em um respeitado livro de receitas que a carne ficava mais macia se, antes de matar a ave, lhe fosse dada uma dose de cachaça. coube a Marcos amolecer os nervos do bicho para a ceia de natal do dia seguinte.
Marcos, é bom contar, era um sujeito enorme e bronco que havia chegado esfarrapado há algum tempo à casa de dona Marina. tinha a feição quase tão atordoada quanto a do peru e não sei mais por qual motivo acabou morando em um quartinho no quintal da casa em troca de alguns favores. nunca tinha ouvido falar em dar cachaça pra peru, mas nem ensaiou questionar quando viu que teria ao seu dispor uma garrafa inteira da boa. foi ele dar de beber ao animal.
não demorou muito e o barulho fez correrem todos de novo para as janelas que davam para os fundos da casa. no terraço, cambaleante, o bicho tentava fugir de Marcos, que soluçava em meio a gargalhadas alcoolizadas ouvidas a uma distância de três quarteirões. à revelia do espanto da família frente à cena, lá de baixo o moço rude ofertou à morte em alta classe e, entre um tropeço e outro, sussurou ao animal: “é seu último gole”.
foi também o dele. morto o peru, caiu a noite e, no dia novo, a família achou Marcos no quintal, de pescoço torcido, depois de tombar bêbado de uma mangueira carregada. o infeliz revirava os olhos de dor, mas terminou de estrebuchar sem reclamar porque soube que sua desfortuna havia sido finalmente brindada, e sem nenhuma miséria. mais tarde, a carne do peru derreteu suculenta na boca de todos, mas nem seria de bom-tom comentar o deleite.
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